Quem vê os resultados do Marvel Studios e a popularidade dos heróis de “Vingadores: Ultimato” talvez não imagine o árduo caminho feito dentro e fora das telinhas. A Marvel Comics e a Marvel Entertainment; o cenário do entretenimento e a interligação de todas as mídias em um projeto audacioso, nunca realizado na cultura em todos os tempos; são coisas que fazem dessa história ainda mais interessante.
Como isso tudo começou? Por que os escolhidos foram os Vingadores? Quando a Marvel conseguiu atualizar suas criações nos cinemas e nas revistas? E o que a série “Lost” tem a ver com tudo isso? Abaixo explico, de forma resumida, é claro, em uma linha cronológica que mostra os altos e baixos, coincidências e planos que nos levam ao maior blockbuster de todos os tempos.
A chamada Era de Bronze dos quadrinhos de super-heróis terminou nos anos 90. Arcos ridículos, Lanterna Verde e Superman morrendo, Wolverine perdendo o esqueleto de adamantium e o Homem-Aranha substituído por um clone. O mercado estava saturado e a única coisa que a Marvel Comics ainda vendia bem eram as dezenas de títulos dos X-Men.
Após várias tentativas de entrada no cinema e na TV, a Marvel Entertainment não viu outra saída além de negociar seus principais personagens para alguns estúdios, que, bem, teriam ideias mais interessantes no momento. No final da década nasciam os famigerados contratos vitalícios envolvendo a Fox, a Universal e a Sony com heróis do peso de X-Men, Demolidor, Quarteto Fantástico, Hulk, Homem-Aranha e outros menos expressivos, a exemplo do Motoqueiro Fantasma e Blade.
Foi aí que na virada do século começou o “boom” das adaptações de super-heróis. O cenário era favorável, com o sucesso de “Matrix” e a chegada de “Harry Potter” e “Senhor dos Anéis” ao cinema. O público estava apto a receber versões decentes de nomes famosos dos quadrinhos e a tecnologia já permitia reprodução fiel de seus poderes.
Nesse cenário, um jovem promissor de 20 e poucos anos trabalhava em duas boas versões de ícones das HQs: Kevin Feige iniciava sua carreira como assistente de produção em “X-Men” e “Homem-Aranha”, dois filmes que se encaixaram bem em gêneros já existentes — ficção científica e comédia de ação.
Isaac Perlmutter, o atual presidente da Marvel Entertainment, tem um histórico de conflitos internos no Marvel Group, especialmente quando a empresa foi à bancarrota em 1996. Depois que as principais franquias foram negociadas no final dos anos 90, o executivo passou a olhar para outras criações remanescentes.
E essa ideia calhou de se alinhar com o que Joe Quesada, que se tornou editor-chefe da Marvel Comics em 2000, tinha em mente para os próximos anos. O objetivo era recuperar personagens como Capitão América e Thor e torná-los novamente relevantes, juntamente com os Vingadores. Vale destacar que não haviam planos especiais para o Homem de Ferro nesse momento.
Joe Quesada passou a prestar atenção em um jovem promissor, que escrevia uma interessante série de investigação chamada “Powers”. Ele foi escalado para rejuvenescer o Homem-Aranha em uma nova linha alternativa, a “Terra Ultimate 1610”, e, principalmente, para lidar com os chamados “heróis de rua”.
Bendis se mostrou apaixonado por Luke Cage e Demolidor. Ele logo criou uma personagem que anteciparia em 10 anos o movimento global de empoderamento feminino. Nascia assim o gibi “Alias”, que tinha como protagonista uma ex-super-heroína chamada Jessica Jones.
Depois de mostrar muito talento nas revistas, o autor foi convocado por Quesada justamente para fazer dos Vingadores os Maiores Heróis da Terra uma vez mais na Marvel Comics.
O controverso Mark Millar também foi convocado por Quesada para integrar o mesmo projeto de revitalização de vários personagens, em uma espécie de “Terra laboratório” (a “Terra Ultimate 1610”).
“Se o Capitão América é um soldado, como assim ele nunca matou ninguém? E se ele é tão f*da, por que nunca mudou de patente?” Além de responder a perguntas como essas, a série de Millar reinventou os Vingadores com um novo Nick Fury e uma dinâmica de equipe que parece sempre ter existido. Tudo passou a ser mais pé no chão, com política, tecnologias e problemas mais mundanos e verossímeis.
A verdade é que sem Millar não teríamos a concepção dos Vingadores que temos hoje e quase tudo do grupo no Marvel Studios foi influenciado pelos Supremos.
Paralelamente, Jeph Loeb deixava o mercado editorial para usar outras habilidades de gestão e administração sobre controle criativo de histórias, autores e elenco. Ele assumiu a produção da série do jovem Superman e conseguiu ser fiel a muita coisa do material original, mesmo com os “monstros da semana” e episódios irregulares.
Depois da experiência com “Smallville”, Loeb partiu para voos maiores e esteve nas primeiras temporadas de “Lost”. Em seguida, deixou o pessoal perdido na ilha para assumir a produção executiva de “Heroes”, que teve uma ótima recepção na primeira temporada — vale lembrar que aqui ele trabalhou ao lado do artista Tim Sale, com quem realizou várias edições especiais na DC e na Marvel, como “Batman: O Longo Dia das Bruxas” e “Capitão América: Azul”.
Em seguida, ele partiu para a NBC e se tornou um especialista em adaptações de quadrinhos para a TV, sempre tentando ser fiel às obras originais.
Feige já havia participado de todas as várias (algumas mal-sucedidas) adaptações de quadrinhos desde 2000 e estava preparado para assumir um estúdio apenas para os filmes de super-heróis. Embora a primeira tentativa com mais um longa do Hulk tenha sido um fracasso, havia uma boa ideia para o Homem de Ferro, que incluía todo o talento de Robert Downey Jr.
Como sabemos, o longa foi um sucesso absoluto e abriu caminho para um universo compartilhado de heróis — algo que nunca havia sido feito antes. Mas, antes era preciso agradar executivos e alinhar os criadores para que todos saíssem felizes na história.
Com a Marvel sendo comprada pela Disney, muita gente do marketing caiu e Feige ganhou moral com o Marvel Studios, inclusive com sinal verde para tocar todos os seu projetos seguintes. Quem esperava que a casa do Mickey fosse zoar com a Casa das Ideias acabou tendo que ficar calado.
Digamos que Ike Perlmutter nunca tenha digerido bem alguns conflitos internos. Ante à postura irredutível da Fox em renegociar os X-Men e o Quarteto Fantástico, o cara simplesmente pediu para a Marvel Comics e a Marvel Entertainment banir essas duas franquias dos gibis, videogames e quaisquer outros licenciamentos.
Nos quadrinhos, Quesada e Bendis resistiram a esse pedido. Eles somente deixaram as equipes em segundo plano e não criaram mais nenhum personagem relacionado — o que garantiria mais propriedade intelectual para a Fox, por exemplo. Fora isso, Perlmutter decretou que os Inumanos fossem os substitutos dos X-Men e mandou Feige, que então respondia à Marvel Entertainment, colocar um filme do grupo no calendário do Marvel Studios.
Isso pegou muito mal nos corredores da Marvel. Os X-Men e o Quarteto Fantástico simplesmente sumiram do merchandising da companhia e até de jogos de videogame — foi a última aparição de mutantes no game “Marvel vs Capcom”, por exemplo.
Sim, o Universo Cinematográfico Marvel (ou MCU, em inglês) tinha sido gestado em “O Incrível Hulk” e “Homem de Ferro”. Mas foi com o primeiro “Thor” é que o Marvel Studios passou a ver o cenário de uma forma mais ampla.
A Asgard de Thor é a da Marvel Comics e não da mitologia nórdica. Isso, por si só, obrigou uma grande equipe a pensar em locais, figurinos, enfim, em uma identidade visual que se conectasse com tudo que estaria por vir. Foi ali a primeira vez que os produtores tiveram que pensar em uma forma de unir um semideus, um inventor bilionário e um soldado dos anos 40 em uma mesma cena sem que isso soasse estranho.
Em uma jogada estratégica, o Marvel Studios foi parar sob a aba direta da Disney, sem a intervenção da Marvel Entertainment. Na “Guerra Civil interna” da companhia, Feige ficou livre de Perlmutter e seus faniquitos. Adivinhe a primeira coisa que aconteceu? Os Inumanos saíram do calendário de filmes e foram parar em uma série de quinta categoria.
Feige, que já vinha trabalhando em fina sintonia com Brian Bendis e Jeph Loeb, conseguiu então, em conjunto, criar algo inédito na história da cultura pop: um universo sincronizado em múltiplas mídias. Ou seja, o mesmo Homem de Ferro que você estava lendo nas revistas era bem parecido com o do cinema, assim como o Demolidor das telinhas e sua contraparte de papel.
“Guerras Secretas”, de 2015, escrito por Jonathan Hickman, foi um “adeus e até logo” definitivo para o Quarteto Fantástico e um soft reboot para alinhar tudo com o cinema e com a TV. A Marvel Comics mudou o visual do Capitão América e a atitude de Stark; deu um filho negro para Nick Fury, que se despediu em uma saga só para isso; destacou os heróis de rua da Marvel e as personagens femininas, entre outras coisas.
Tudo foi reposicionado para que quadrinhos, TV e cinema passassem a se retroalimentar de ideias de forma contínua. Obra conjunta do trio Bendis, Feige e Loeb — entre vários outros nomes, é claro, mas com destaque para os três.
Loeb seguiu com seus planos de expansão de franquias menores, mas de personagens queridos, na TV, especialmente na Netflix. Como sabemos, ele teve muito sucesso com Demolidor e foi bem com Luke Cage e Jessica Jones — embora Justiceiro e Punho de Ferro tenham ficado um pouco abaixo do esperado.
Ele até mesmo já havia reaproximado a Marvel da Fox com séries como “Legion” e “Gifted” e em algumas ocasiões easter eggs improváveis de duas empresas “em briga” às vezes escapavam em um canto ou outro.
O bom relacionamento de Feige com o pessoal da Sony trouxe de volta o aracnídeo, que, embora ainda esteja atrelado à gigante japonesa, é a “cara” da Marvel. Falar sobre a Casa das Ideias sem o Amigo da Vizinhança é quase impossível. Então, trazer o flagship da empresa de volta para casa é um grande feito.
Como sabemos, depois de completa a compra da Fox pela Disney, quase tudo retornou para a Marvel — ainda tem muitos personagens do Homem-Aranha com a Sony e coisas do Hulk com a Universal. Mas, como já disse em outra matéria sobre os quadrinhos, é apenas uma questão de tempo até que as propriedades colocadas de lado voltem a fazer sucesso nas HQs.
E, vejam só, os X-Men estão de volta em um game, “Marvel Ultimate Alliance 3”, depois de 8 anos.
Sacou a jornada até chegar aqui? Tudo isso foi contado para celebrarmos o esforço de criadores visionários, que tiveram que se colocar nos tênis de cada fã para poder compartilhar personagens queridos em mídias tão diferentes.
É incrível saber que um menino de 8 anos, após ver o filme do Homem de Ferro em 2008, pôde ver o mesmo ator em Vingadores apenas quatro anos depois. Depois do Marvel Studios, “super-herói” virou um gênero próprio no cinema.
Aquele menino agora tem 18 anos e cresceu vendo seus heróis em diferentes mídias. Como dá para notar, depois de “Vingadores: Ultimato” nada mais será o mesmo no entretenimento e na cultura pop mundial.
Fonte: Tecmundo